Sou esta areia
que se esvaia
entre o cascalho
e a duna
a chuva de verão
chove - me na vida
sobre mim a vida
me foge persegue- me
e vai acabar no dia
do começo
Caro instante vejo - te
névoa que se levante
quando não tiver de pisar
estas longas soleiras movediças
e viver o espaço de uma porta
que se abre e que se fecha
Quando uma mulher se despe
numa clareira rodeada de arbustos
e sobre uma toalha se estende ao sol
è ambíguo porque não quer ser vista
e ao mesmo tempo a sua pele estremece
sob um olhar ausente ou alguém escondido
entre a folhagem tambèm a palavra se expõe
e oculta no seu fulgor de lâmpada alimentada
pelo fogo obscuro que aspira
a nudez solar ela inclina - se
sobre a água para ver a sua
imagem com o olhar não dela
mas de um outro que a move
para ser presença pura no
olhar de ninguém
e poderá ser um dia o de algum
leitor que se deslumbra com a
sua abstracta nudez sem esta
duplicidade e sem este puro
recato através do silêncio ela
não possuirá o frémito ideal
da exposição e seria opaca
ou demasiado transparente
sem os meandros cintilantes
que a tornam fugidia como
um fio de mercúrio e a sua
nudez teria a consciência
inerte de uma pedra sem
fogo e sem sal o focinho
do desejo por isso o poema
è uma mulher que se enrola
na sua nudez atè ser tão
redonda como redondo
è o ser com a sua lìngua
bìfida entre os lábios do
seu sexo .
Hà palavras que esperam
que o branco as desnude
para se tornarem transparentes
è uma oferenda do olvìdio
a folha flexível è uma luva
vegetal para que não oscila
Como o abdómen de uma adolescente
a página suscita a fértil fragilidade
de uma caligrafia que se paga sobre
os sulcos da neve aì aparece a graciosa
metade em que cintila o polèn da límpida
abolição
Escrevo para ser contemporâneo
das nuvens para pertencer a pobreza
e nua pàtria inerte
coberto pelo violento alfabeto dos clàxons
escrevo para que se levantem os pássaros
de areia e ao pulverizarem - se a poeira
do seu desaparecimento .
Há em tudo um apelo mudo
tudo nos pede um favor e
me comove e as mais
pequenas coisas são
como as crianças
e a sua presença
guia - me e torna - me
atento e sò ouço esse
encanto e lhe acudo
a mais pequena coisa
encontra - me , fere - me
e torna - me todo .
Redondinha
apenas a amizade
se lembra do amor
ouve esta canção
por ser tão antiga
apenas a amizade
se lembra do amor
paixão partiu leve
deixou o voo livre
e a solidão ficou
para se povoar
a luz na sombra
serei sempre a cor
serà sempre o som
junto a tal flor
rapa a paz rapaz
não chores rapariga
a humanidade toda
é a tua fiel amiga
apenas a amizade
se lembra do amor
decora esta letra
e liberta o poema .
Não sei como dizer - te
que a minha voz procura - te
e a atenção começa a florir ,
quando sucede a noite
esplêndida e casta
Não sei o que dizer
especialmente quando
os teus pulsos enchem - se
de um brilho precioso e tu
estremeces com um
pensamento chegado .
Quando iniciado a campo .
o centeio imaturo ondula
tocado pelo pressentir
de um tempo distante ,
e na terra crescida os homens
entoam a vindima ,
- eu não sei como dizer - te
que cem ideias dentro de mim ,
procuram - te
Quando as folhas da melancolia
arrefecem com astros ao lado
do espaço o coração è uma
semente inventada no seu acético
escuro e no seu turbilhão de um
dia , tu arrebatas os caminhos
da minha solidão como se toda
a minha casa ardesse pousada
na noite
- e então não sei o que dizer
junto a taça de pedra do teu
tão jovem silêncio quando
as crianças acordam nas
luas espantadas que às
vezes caem no meio do
tempo ,
- não sei como dizer - te
que a pureza dentro de mim ,
procura - te
Durante a primavera inteira
aprendo os trevos , a água
sobrenatural , o leve e
abstracto correr do espaço
- e penso que irei dizer algo
cheio de razão , mas quando
a sombra vai a cair da curva
sufraga dos meus lábios
sinto que me falta um
girassol , uma pedra ,
uma ave - qualquer
coisa extraordinária
Porque não sei como
dizer - te sem milagres
por dentro de mim
è o sol , o fruto , a
criança , a àgua ,
o deus , o leite ,
a mãe , o amor ,
que te procuram
Fomos namorados há vinte anos
e toda a manhã perdidos à procura
das palavras de ontem à noite
julgamos - las pousadas à tarde
em cima da mesa onde era
costume trocarmos de livros
ao sol ou frutos com frio ,
corremos a casa o bosque
e nada , sò o silêncio estranho
mesmo sem vento ou fùria
a forçar as frestas e as janelas ,
a bater com as portas , a memória
dos sonhos a diluir - se no adormecer
e acordar tumultuosos que nos percorrem
um sono longo e difícil , uma luz sem razão ,
uma sombra de ninguém , um elo seco sem
sentido e caminho , um brado animal de estar
sempre tudo fora de sítio , embora a mão ,
localizando o caos perto , a alegria solitária
de irmos longe fazer a cama um do outro ,
levantar a almofada e descobrir tudo guardado ,
estimado e palpável ali debaixo , como um segredo
a chamar - nos de propósito , como o primeiro som
de uma criança a sair do ùtero , a última sílaba a
escapar sábia de uma boca ávida , nua para a partida
ou chegada , um abraço de abrir o corpo e fechar o
reencontro
Apenas a amizade
Se lembra do amor
Ouve esta cantiga
È moderna e sò
Por ser tão antiga
Apenas a amizade
Se lembra do amor
Paixão partiu leve
E a solidão ficou
para se povoar
a luz na sombra
Serei sempre a cor
Serás sempre o som
Junto a tal flor
Rapa a paz rapaz
Não chores rapariga
A humanidade toda
è tua fiel amiga
apenas a amizade
se lembra do amor
decora esta letra
e liberta o poema
Cinco sentidos bailam à cabra - cega
um sexto de olhos vendados è o que
melhor vê a noite :
a sensibilidade , ainda um sètimo
- a arte - delimita o espaço invisível
com um círculo mágico em redor
começa a crescer um âmago
a partir do centro e a poesia
não mete medo , não come
sonhos , não cospe monstros
è uma vertigem muito alta
de água e luz
pode ir atè sempre , pode
aninhar - se na posição de feto
dentro dos nossos corações ,
pode transformar - se em pò
na manhã seguinte para voltar
a construir um jogo sempre
diferente :
vida amor e morte - a pirâmide
peça a ela que se desnude
começa pêlos cílios
segue ao arame dos utensílios
diários insónia alinhando - se
de tiros a infância seus disfarces
è preciso que se arranque toda
a face deixar que os olhos descansem
lado a lado com os sapatos na camurça
oscilante de um quarto isso se quer
desconfia tocar o que se fia
um par de presas topázio
entre o vão das costelas
abra o fecho ela desfecha
onde vaza a luz e suas arestas
carunchos e cupidinoso roem
vorazes a choupana de ripas
pendem o esteio ramo de trigo
feito amuleto para celeiros cheios
tachos esfarelam crostas de grãos
muìdos
e redes balançam seus esgarços
perto do chão onde uma nódoa
preta mostra o antigo fogo
tudo abandono e no entanto
là fora o poema semeando
para os que agora cruzam
desculpe - me o atraso
por chama - lo necessidade
se ainda me engano
que a felicidade não se
ofenda por toma - la
minha
que os mortos me perdoem
por luzirem na memória
desculpe - me o tempo
pelo tempo tanto de
mundo ignorado por
segundo
desculpe - me o amor antigo
por sentir como novo o primeiro
perdoa - me as guerras distantes
por trazer flores para casa
perdoe - me os que clamam
das profundezas pelo disco
de de minuetos
desculpe - me a gente nas
estações pelo sono das
cinco da manhã
sinto muita esperança açulada
se as vezes me rio
sinto muito deserto se não
lhes levo uma colher de
água
e tu falcão há anos na mesma
gaiola fitando sem movimento
sempre o mesmo ponto ponto
absolve - me mesmo se tu
fores um pássaro empalhado
desculpe - me as grandes respostas
pelas pequenas verdades não me dê
excessiva atenção
serenidade mostra - me magnanimidade
ature segredo de ser se eu puxo os fios
das suas vestes
não me acuses alma por tê - la raramente
desculpe - me tudo por não estar em toda
parte
desculpe - me todos por não saber ser
cada um e uma
sei que enquanto viver nada me justifica
jà que barro o caminho para mim mesmo
não me julgues mau fala por tornar emprestado
palavras patéticas e depois esforçar - me para
parecer leves
o meu amor se amplia
è um paraquedas perfeito
è um clique que se exala
e o seu peito se faz imenso
o meu amor não ruge
não clama
não roga
não ri
a sua pele
um mapa mundial
as minhas palavras
perfuram o último
sinal do teu nome
os meus beijos
são enguias
que ufanam
em deixar caricias
são um jorro reminiscente
de música sobre fonte de Roma
ninguém pode fugir ainda do seu
território animìco
não hà rotas nem dobras
mas insectos
tudo è tão limpo
que as minhas lágrimas
sublevam - se
a minha criação è um
pranto
mimice junto a tua ternura
neste momento o tinteiro
alcança o voo e alinha - se
atè os limites inacabàveis
de mosquitos a fazerem
amor
soa o fatídico som
jà não voo
è o meu amor que se
amplia .
as vezes nos reversos
penso em voltar para
england dos deuses
mas atè os ingleses
sagram todos os meses
e mandam her royal
highness à p.p
digo ;
aguenta com altivez
segura o abacaxi com
duas mãos doura tua tez
sob o sol trópicos e talvez
aprendemos a ser feliz
como as pombas da praça
matriz que voam alto
sagazes e nos alvejam
com suas fezes às vezes
no reverso
( de Rilke Shake )
Angèlica Freitas , nascida em 1973
em abril , pelotas - RS , tem poemas
publicados em diversas antolo
( Cosac Naify / Z letras )
Os pensamentos que me vestiam
nas ruas movimentadas
rostos
rostos
biliões
de rostos
na face
da terra
dizem
que cada
um è diferente
dos que jà se foram
e dos que virão um
dia
mas a natureza
- quem entende ?
- cansada de trabalho
que nunca acaba
talvez repita
suas ideias
antigas e ponha
- nos rostos
jà usados outrora
pode ser Arquimides
de jeans
que passa ao lado
a Czarina Catarina
com roupas de brechò
um dos faraós de pasta
e óculos
a viúva de um sapateiro
descalço vinda de Varsóvia
pequenina
Alta-mira levando as netas
para o zoológico
um vândalo cabeludo
a caminho de um museu
para se deliciar com os
mestres do passado
os que tombaram
há duzentos séculos
há cinco séculos
há meio séculos
alguém levado
em carruagem dourada
alguém levado
em vagão de extermínio
Montetuma , confúcio , Nabucodonosar
suas babàs
suas lavadeiras
e Semìramis que sò fala iglês
biliões de rostos na face da terra
meu
seu
de quem
tu nunca saberás
talvez a natureza
tenha que ludibrar
para dar conta dos
prazos e da demanda
e pesque atè o que estava
submerso no espelho
da deslembrança
ali a beira dos nossos
olhos se perdeu
depois que a trouxemos
inteira no seu canto
a tivemos como um presente
inesperado em volta das nossas
mãos a esquecemos como a
mobília de todos os dias
obrigados a seguir as convicções
e as leis do universo em frente
dos nossos olhos se perdeu
agora o que nos resta dela
não chega para lembrar
o tempo em que a palavra
liberdade cabia na boca
de cada um como um
fruto e em cada homem
como um fruto
e em cada homem com
desespero imortalizava
cada hora com a mesma
arte de tecer um poema
manual
um poema sem arquitectura
onde o arado caminhasse
com o vento nem sempre
para o mesmo lado
como porém o sentido
da sua deriva
transparente como um nome
ordena sem esforço
a musica penetra - me
e por ela parto em direcção
de mim próprio onde medito
e me demoro
sua medida tão certa atravessa - me
como um fio de navalha e fecho
os olhos para não saber que existo
num momento cristalino divago
e agora vejo como o silêncio não
faz parte do mundo .