Manuel Castro - carta e ultimo poema
provavelmente de amor
Se para o mundo , acreditando
na sua eternidade , podemos dizer :
não há morte nem principio para
o amor , efémero como homem ,
há começar e acabar .
O seu fim tanto è material de dor
como alivio ou desencanto .
Esta simbiose emocional encontra
na poesia vasto eco , reflectindo
vivências particulares a que a pugência
expressiva acrescenta por vezes dimensão
avassaladora , qual seja o exemplo dos dois
poemas de Manuel Castro ( 1934 - 1971 )
na sua trabalhada contenção verbal
a cabeça ficava marcada
invisível , mas quando me
deitava de costas na escuridão ,
sentia uma queimadura na
têmpera , a crosta a ferver
de baixo , da nuca à testa
interpretava como uma
cicatriz que me acompanharia
atè a morte , o emblema de uma
guerra assombrosa de que jà
esquecemos os pormenores
e o sentido .
Estava ali , ficava ali para
sempre , confundia - se
indissoluvelmente com
o destino .
No entanto , essa marca
garantia que eu era livre ,
fundava nela ( ... )
o meu destino seria
dai em diante irredutível ,
não me sujeitava a nenhuma
regra alheia ( ... )
porque o prestigio da poesia
è menos ela não acabar nunca
do que propriamente começar
( ... )
vivemos demoniacamente toda
a nossa inocência
Genial , misterioso , visionário ,
trabalhador incansável das metáforas
e dos símbolos , Herberto Hélder
morreu de ataque cardíaco numa fatídica
noite de uma segunda - feira , deixou pronto
um livro antes de partir .
O celecanto , peixe fabuloso cuja existência
se equilibra entre a realidade e a ficção ,
procurado por cientistas loucos , entrou
para ficção portuguesa pela
mão de Herberto Hélder
nesse singularìssimo
Os Passos em Volta .
Foi a sensivelmente
a 54 anos .
Hoje sabemos que
o calentano era ele ,
o prestigioso poeta
que mergulhou
totalmente no temível
poder da palavra e
nunca se deixou capturar
Sò lhe falta saber tudo
Sò lhe falta a mulher
para morrer com ele ,
a mulher que hà nele
no fundo ,
a morta nele que de
noite , ressuscita ,
e pelo dia todo
de cada dia da terra
lhe rouba a alma o
ceptro .
O segredo de ser Senhor
de tudo
Há quase três anos ( 1930 - 2015 )
dava - nos este poema no dilacerante
e polémico A MORTE SEM MESTRE ,
o livro trabalhado para desfazer o mito
onde tantos o queriam encerrar
- como se soubesse que as palavras
que ali dizia eram as últimas , o maior poeta
português desde Fernando Pessoa fez o que
sempre fez ; baralhou , lançou a confusão ,
recusou - se a ser o que queriam que ele
fosse .
Numa fatídica noite de segunda - feira ,
um ataque cardíaco levou o bardo -
sabe - se que ele deixou pronto um
livro antes de partir editado pela Porto
Editora .
A difícil arte de expressão em soneto
segundo Baltazar del Alcàzar
Volto à difícil arte do soneto
com uma das primeiras
brincadeiras sobre a dificuldade
de expressar em soneto uma
ideia , duas sentimento ou
acontecimento , na rigidez
da sua forma rimada
em quatorze versos sílabas ,
com a exigência adicional
de exposição , desenvolvimento ,
e conclusão do assunto .
Já antes aqui no blog , no artigo ,
dei conta de alguns exemplos
e considerações a este propósito ,
com o destaque especial do soneto
de Baltazar del Àlcazar ( 1530 - 1606 )
no qual o poeta tenta , sem conseguir
antes que o soneto acabe acabe ,
expressar um segredo a sua bela
inimiga Inês .
Bela inimiga seria , no contexto
poético do tempo , uma mulher
desejada que não respondia ao
assédio desse desejo ,
sendo o soneto a época uma
privilegiada forma o desejo
amoroso , tal está subentendido
no segredo que o poeta quer
contar e não consegue .
Temos pois com este exercício
poético a ironia de escrever um
soneto sem assunto , continuando
em silêncio o desejo que o poeta
pretendia expressar .
A Inês , e com Inês , tem o poeta
alguns deliciosos poemas burlescos ,
que certamente trarei ao blog noutra
ocasião . Por agora a brincadeira poéticas
à volta de expressar o desejo amoroso
escrevendo um soneto :
SONETO
Decidi revelar - me em soneto
o meu segredo , Inês bela inimiga ;
Mas por mais ordem que ao fazê - lo
eu siga , não pode jà caber neste
quarteto .
Chegados ao segundo , vos prometo
que não se há - de passar sem que eu
os diga ;
Mas estou feito , Inês uma formiga
que tonta gasta os versos do seu
soneto ,
conto - lhe os versos todo , e hei
notado que , pela conta que o soneto
toca , jà este meu , Inês , vai acabado .
Tradução de Jorge de Sena
Transcrito da Poesia de 26 séculos ,
antologia , prefácio e notas de Jorge
de Sena , edição fora do texto , Coimbra ,
1993
Da Grécia Antiga , um hino Òrfico
à Noite em versão de Herberto Hélder
Apenas a Noite , material ou simbólica ,
nos permite o encontro connosco na
verdadeira intimidade do Eu .
Da aproximação do Eu à Noite deram
conta os poetas : Fernando Pessoa , Álvaro
de Campos com o poema Enxertos de Duas :
Vem , Noite antiquíssima idêntica ,
... deu - o de forma genial , tal
como Genial è a versão de Herberto
Hélder para um Hino à Noite vinda
da Antiga Grécia Felicidade e Encantamento ,
Rainha das vigílias , Mãe do Sonho , / .. , e
que a seguir transcrevo .
Este poema , entre outras leituras , torna
claro o apelo à harmonia que a A Noite
Permite ... / escuta , ò indulgente Antiga ,
a imploração Terrena , / e aparece com o
Teu Rosto Obscuro e Lento no Meio dos
Vivos Terrores do Mundo .
Outras menos encantadas inovações
à noite haverá , mas não deixo de referir
ainda mantendo - me na poesia em
português , o genial poema de Antero
de Quental , Per Amica Silentia Lunae :
Eu amo a Noite às horas sossegadas / ... ,
recolhido no volume póstumo / Raios
de Extinta Luz .
Versão de Herberto Hèlder
Transcrito de Rosas do Mundo ,
2001 Poemas para o Futuro ,
Assirios & Alvim
HINO ÒRIFICIO À NOITE
Cantarei a criadora dos homens
e deuses - Cantarei a Noite .
Ò forte Divindade ardendo as
estrelas , Sol Negro .
invadida pela Paz e o Tranquilo
e múltiplo sono , e consoladora ,
onde as misérias repousam as
campânulas de sangue ,
Ò embalador cavaleira , luz
negra , amiga geral ,
Ò incompleta , alternadamente
terrestre e celeste ,
Ò arredonda no meio das forças
tenebrosas , leve afastando a luz
da casa dos mortos e de novo
te afastando tu própria .
A terrível fatalidade e a mãe
de todas as coisas , ò noite
maravilhosa , constelação
calma , ternura secreta do
tempo , indulgente
antiga , a imploração terrena ,
e aparece com o teu rosto
obscuro e lento no meio
dos vivos ternura do mundo .
A Lua traz - me o teu sorriso
como vens do paraíso ,
admiro a tua beleza ,
vejo a destreza que
tens
Observo - te num vai
vem
por pareceres ao céu
um canto
um desenho na tela
em que admiro por
inteiro
ligeiramente amo - te
que inveja sinto ,
tocas onde eu não
posso , tocar
transformas o nosso sonho ,
ò lua que espelho deste , o
mundo a porta do além , a
pulsação tranquila do mar
ao meio dia
o universo que estremece
a paisagem solitária .
Estes profundamente
na pedra
em mim e a pedra
em mim
ò salina
imagem fechada
em sua força e pugência
e o que se perde em si
como Espírito de musico
estilado em torno estilado
em torno de violas
a morte que não beijo
a erva incendiada
que se derrama na íntima
noite
o que se perde o que se
derrama na intima noite
o que se perde
dei - te de ti
e o que quase se perde
de ti
a minha voz se renova
mas estilo de prata
viva
Beijar teus olhos
será morrer pela
esperança
ver no aro de fogo
de uma entrega
a tua carne
de vinho roçada
pelo espírito de Deus
serà criar - te para luz
dos meus pulsos
e instantes
do meu perpétuo
instante
Eu devo rasgar
a minha face
para que a tua
face
se encha se encha
de de um minuto
sobrenatural devo
murmurar cada coisa
do mundo
atè que seja o incêndio
da minha voz
As águas que um dia
nasceram onde marcaste
o peso da jovem carne
aspiram longamente a
nossa vida as sombras
que rodeiam o êxtase ,
os bichos que levam
o instinto ao fim ao
instinto expresso
no lodo seu bárbaro
fulgor , o divino impresso
no lodo , a casa morta , a
montanha inspirada , o mar
os centauros de crepúsculo
- aspiram longamente a nossa
vida .
Por isso è que estamos
a morrer na boca um
do outro por isso nos
desfazemos no arco
do verão , no
pensamento da brisa ,
no sorriso , no peixe ,
no cubo , no mostro
aberto - no amor mais
terrível do que a vida .
Oh amados cavalos
com flores de giesta
nos olhos novos
casas de madeira
dos planaltos
rios imaginados , espadas
danças , superstições , cânticos
coisas maravilhosas da noite
ò meu amor em cada espasmo
eu morrerei contigo
A vida inteira , sobe
do meu coração ,
o povo renasce ,
o tempo
ganha a alma
o meu desejo
devora a flor
do vinho
envolve as tuas
ancas
com uma espuma
de crepúsculo e crateras
Procura - se um emprego
pode ser de caçador de cometas
empilhadora de estrelas
ou restauradora do brilho
da lua que possa retocar
as cores do arco - Íris
e ampare as barbas do Noel
que faça pose para o Da Vinci
que ensine púberes borboletas
o beabe do bater das asas e ao
vento como assobiar deveras
baixinho
tenho óptimos precedentes !
procura - se urgentemente
um emprego
posso ser sonhador , mágico
- Ilusionista
Se houvesse degraus na terra
se tivesse anèis o céu ,
eu subiria os degraus
e aos anèis me prenderia .
No céu podia tecer uma nuvem
toda negra , e que nevasse , e
chovesse , e houvesse luz nas
montanhas , e a porta do meu
amor o ouro se acumulasse .
Beijei uma boca vermelha
e a minha boca tingiu - se ,
levei um lenço a boca
e o lenço fez - se vermelho .
Fui lava - lo na ribeira
e a água se tornou rubra ,
e a fímbria do mar , e o meio
do mar , e vermelhas se volveram
a asas da águia que desceu para
beber , e metade do sol e a lua
inteira se tornou vermelha .
Maldito seja quem atirou uma
maçá , uma mantilha de ouro e uma
espada de prata .
Correram os rapazes a procura da espada
e as raparigas correram procura da mantilha ,
e correram , correram as crianças à procura
da maçã
Ela è a fonte , eu posso
saber que è a grande
fonte em que todos
pensaram
quando no campo
se procuravam o trevo ,
ou em silêncio
se esperava a noite,
ou se ouvia algures
na paz da treva
da terra o urdir do tempo ...
Cada um pensava na fonte .
Era um manar secreto
e pacifico .
Uma coisa milagrosa
acontecia ocultamente .
Ninguém falava dela ,
porque era imensa .
Mas todos a sabiam
como a treta .
Como o odre .
Algo sorria dentro de nòs ,
Minhas irmãs faziam - se
mulheres suavemente .
Meu pai lia
sorria dentro de mim
uma aceitação do trevo ,
uma descoberta muito casta .
Era a fonte .
Eu amava - a dolorosamente
e tranquilamente .
A lua se formava com uma
ponta subtil de ferocidade ,
e a maçã tomava um principio
de esplendor .
Hoje o sexo desenhou - se
o pensamento perdeu - se
e renasceu .
Hoje sei permanentemente
que ela è a fonte .
Fomos namorados há vinte
anos e todas as manhãs
à procura das palavras de
ontem à noite, julgàmo -
- las pousadas à tarde
em cima da mesa onde
era costume trocarmos
de livros ao sol ou frutos
com o frio , corremos a
casa o bosque e nada ,
sò um silêncio estranho
sem vento ou fùria a
forçar as frestas às janelas ,
a bater com as portas , a
memória dos sonhos a diluir
- se no adormecer e acordar
tumultuosos que nos percorrem
um sono longo e difícil , uma
luz sem razão , uma sombra
de ninguém , um elo seco
sem sentido e caminho ,
um brado animal de estar sempre
tudo fora do sitio , embora a mão ,
localizando o caos perto , a alegria
solitária de irmos longe fazer a
cama um ao outro , e descobrir
tudo là guardado estimado e
palpável
ali debaixo , como um segredo
a chamar - nos de propósito ,
como o primeiro som de uma
criança a sair do ùtero , a
última sílaba ávida , nua
para partida ou chegada ,
um abraço de abrir o corpo
e fechar o reencontro .
O livro em que eu toco
oculta os maiores segredos
e com eles esgotarei o meu
desejo para sempre por isso
o projecto como a um filho
e velo como a um deus .
O livro guarda um discurso
sensato e justo e os seus
ensinamentos prolongarão
no mundo a ordem recta
e farão cumprir a unidade
das coisas todas pois a
sua leitura reunirá todas
as leis dos povos para
que não possam triunfar
umas sobre as outras
e apresentará a frente de
todas as leis dos povos
para que não possam
triunfar umas sobre
as outras
e apresentará à frente de
todas a mais fraca porém
a lei dos povos a lei que
não distingue nem divide .
Não entrarei no livro como
um estranho as palavras que
ele disser eu as direi
minha voz sacrificarei para
engrandecê -lo ainda mais
e a música que se ouvir
eu a libertarei do átrio
do meu peito
o livro fala das coisas
como senão existissem
e as conhece e as protege
como a um rebanho
tal como quem ao olhar
invocar o seu nome
participa de seu secreto
ser
o livro está próximo
de ser a minha residência
por isso inclino o meu rosto
à sua presença
e antes de o habitar prefiro
ficar calado diante dele
atè que me torne semelhante
à humilhação
o livro ainda não o escrevi
e por cima de mim passam
os dias quanto o esperam .
Magoam - me casam - me os poetas
intocáveis , os depuradores de palavras
os detentores de enigmas que apenas
consideram poesia o ilegível , o indizível ,
ou o inatingível segredo confinado pelos
seus deuses , privados e preciosos a
visionários , iluminados e abençoados
homens aquém dos outros ou fiéis aos seus.
No dia em que alguém me convença
de que isso è verdade - espero não
estar vivo - farei o mesmo que Einstein
faria a sua forma antes de saber do seu
destino ; engulo o poema e abdico da
poesia .
O ser humano simples não è incompatível
com o ser profundo , não somos descendentes
de um mistério nem lhe vamos descobrir o
conteúdo , todos os dias um livro grita
e pela frente há imenso caminho, toda
gente quer ser feliz nesta cratera , o
ultimo a sair deixe a porta aberta .